Arca de Noé da direita americana

Ao avesso do tradicional ramerrão eleitoral da direita portuguesa que, de quatro em quatro anos, modera o discurso dos mais empedernidos candidatos conservadores, a antecipação do escrutínio presidencial estadunidense está a dar azo a uma invulgar competição de reacionarismo entre os dirigentes do Partido Republicano.

Por António Santos, no Jornal Avante


  
Ao passo que para o PS, PSD ou mesmo CDS-PP, um acesso de frontalidade equivaleria a cometer suicídio político, nos EUA, os homens que se perfilam para a nomeação republicana vêm assumindo as mais virulentas declarações de guerra ao progresso como um trunfo midiático.

O senador do Texas, Ted Cruz, inaugurou a campanha às primárias republicanas com um desafio aos outros candidatos: “Todos vão dizer que ‘Eu sou o homem mais conservador que alguma vez viveu’, mas falar é fácil. Digam-me antes o que defenderam e pelo que lutaram”, rematou.

Estava lançado o mote para uma bizarra corrida de pureza ideológica em que o pódio pertence aos titulares das melhores credenciais religiosas, aos currículos estaduais que abonarem a favor da destruição das funções sociais do Estado e aos paladinos do racismo, da homofobia e da xenofobia: uma verdadeira arca de Noé de reacionarismo.



Entre os 15 principais candidatos à nomeação, cinco, John Kasich, Ben Carson, Rick Perry, Rick Santorum e Mike Huckabee, garantem ter sido escolhidos por Deus; já Jeb Bush (irmão de George W.) prometeu “pôr um ponto final” no Medicare, o único programa de saúde pública que disponibiliza serviços mínimos à população mais carente; por seu turno, Ted Cruz não tem pejo em denunciar uma “guerra contra a masculinidade” e promete proibir o aborto, mesmo nos caso de violação ou perigo de vida para as mulheres; não ficando atrás, Scott Walker, que promete encerrar o Departamento de Educação (equivalente ao Ministério), perguntava-se, em jeito de campanha: “se fui capaz de acabar com cem mil sindicalistas no Wisconsin, o que é que acham que sou capaz de fazer a nível internacional?”.

A tática Trump 
Malgrado o sestro, asinino e boçal, de que se fazem acompanhar estas declarações, o reacionarismo republicano não é, de todo, uma reação psicossomática, mas sim o bilhete de entrada na liça política. Prova disto é Donald Trump, a quem as sondagens elevaram ao primeiro lugar entre os republicanos depois de ter dito que os “mexicanos são violadores e criminosos”, para prometer expulsar todos os imigrantes ilegais.

Há uma semana, à margem do primeiro debate entre os candidatos republicanos, o multimilionário explicou de forma gráfica e obscena que a “agressividade” da jornalista que moderou o debate era consequência da menstruação. Já esta semana, Donald Trump foi ainda mais além e prometeu não só expulsar todos os cinco milhões de imigrantes indocumentados, mas deportar também os filhos, nascidos em território americano. Confrontado com a inconstitucionalidade de deportar cidadãos estadunidenses, Trump admitiu o propósito de rever a Constituição. Uma e outra vez, Trump aumentou a vantagem sobre os outros candidatos republicanos.

Trump não é estúpido e sabe que, neste momento, a certeza da sua vitória nas primárias republicanas é proporcional à dimensão da sua derrota como eventual candidato presidencial. O que está em causa com a radicalização do debate republicano é a natureza da resposta que a classe dominante prepara à crise do capitalismo. Mais do que um bizarro adereço midiático, junto do grande capital, Trump surge como a experiência social do fascismo cuja utilidade dependeria de um monstruoso recrudescimento da agressão imperialista no mundo ou de uma explosão social na luta dos afro-americanos.

Comentários