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Boaventura de Sousa Santos
por Jáder Santana - TLAXCALA - 28/03/2017

Cientista social Boaventura de Sousa Santos lança A Difícil Democracia e reflete sobre ascensão do conservadorismo em um mundo cada vez mais desiludido com o projeto social dos governos de esquerda

Em seu novo livro, publicado no Brasil no fim do ano passado, o cientista social português Boaventura
dos Santos fala de “reinventar as esquerdas”. Com uma visão globalizada, lança luz sobre possíveis paralelos entre a ascensão dos movimentos Occupy e os desafios da Venezuela pós-Chaves. Vai da Revolução Cubana às experiências com os refugiados no Sul da Europa. Sinaliza para uma democracia desgastada, mas que segue caminhando em direção a um ponto ainda incerto.
 
Boaventura foi um dos autores homenageados na III Bienal do Livro e da Leitura, que aconteceu em Brasília no último mês de outubro. Na ocasião, também recebeu o título de cidadão honorário brasiliense e lançou mundialmente A Difícil Democracia, editado aqui pela Boitempo Editorial e com orelha de Frei Betto. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Boaventura avança sua reflexão para fatos recentes, como a eleição de Donald Trump e as crises políticas no Brasil e Argentina.

Boaventura de Sousa Santos
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Atualmente dirige o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordena o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. +

O POVO - O desencanto com as esquerdas é global e generalizado?

Boaventura de Sousa Santos - Ao nível mais geral, o problema da esquerda é o de falta de alternativa ao capitalismo neoliberal que, depois da queda do Muro de Berlim, se impôs globalmente através da desregulação dos mercados financeiros, da liberalização do comércio e das privatizações. Enquanto houver desigualdade, discriminação, exclusão social haverá sempre espaço para políticas de esquerda. Sempre que surja a possibilidade de uma alternativa, mesmo que muito modesta, a alternativa pode emergir. Para dar um exemplo que conheço bem, o meu país. Temos em Portugal, há mais de um ano, um governo estável, moderado, de esquerda assente na unidade das esquerdas, um governo do Partido Socialista com o apoio parlamentar do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Foi possível formular uma alternativa muito moderada, mas mesmo assim significativa e credível, às políticas de austeridade que o governo hiper-conservador tinha imposto ao País entre 2011 e 2015. 

A esquerda desapontada dos EUA é a mesma do Brasil e da Argentina? Estamos frustrados pelos mesmos motivos?

As razões de frustração variam de região para região. A América Latina tem a especificidade de ter começado o milênio com vários governos de esquerda. Estes governos não alteraram em nada o modelo de desenvolvimento e apenas acreditaram que o preço alto dos recursos naturais continuaria por muito e permitiria aos ricos continuarem a ser ricos e até mais ricos, enquanto os pobres deixariam de ser tão pobres. Por isso não fizeram reformas estruturais e governaram à moda antiga, não só com coalizões com a direita, mas usando o mesmo tipo de clientelismo político. Mas o modelo era insustentável e virou-se contra a esquerda. No entanto, a dureza da reação, sobretudo na Venezuela, Brasil e Argentina, deve-se em boa parte à interferência clandestina da CIA e do imperialismo norte-americano, uma interferência que os democratas brasileiros têm dificuldade em reconhecer. Daqui a umas décadas a documentação estará disponível, mas será tarde.Nos EUA é difícil falar de esquerda. O Partido Democrata é um partido de direita. A esquerda existe mas tem dificuldade em encontrar uma formulação política. Bernie Sanders representou essa esquerda órfã, mas o Partido Democrático usou todos os meios, incluindo os ilegais, para impedir que ele ganhasse as eleições primárias. Sanders, para surpresa do mundo, veio levantar a bandeira do socialismo no coração do capitalismo. E a verdade é que os jovens e os não tão jovens aderiram.

Entre 2011 e 2014 foram registrados em todo o mundo movimentos que alimentavam a expectativa de renovação democrática. Os movimentos e partidos que compartilham dessa ideologia poderiam ter previsto essa derrocada da esquerda, essa mudança drástica no cenário político?

Esses movimentos são uma grande mistura, e eu não diria que todos tinham por objetivo renovar a democracia. O golpe na Ucrânia, orquestrado pelos EUA e pela União Europeia, não visava qualquer renovação. Visava provocar a Rússia e conseguiu. Na Espanha, é certo que não se conseguiu inverter a política de direita apesar do movimento dos indignados e depois de três eleições para resolver o impasse político. Mas o partido Podemos é hoje a terceira força política. Se não cometer mais erros do que os que tem vindo a cometer pode vir a ser um dos fatores de renovação das esquerdas na Europa. Os ciclos políticos de verdadeira transformação social são muito longos. Continuamos a sofrer as consequências da queda do Muro de Berlim. 
 
A herança das revoluções
Em suas treze "cartas às esquerdas", publicadas no livro A Difícil Democracia, Boaventura de Sousa Santos sugere reflexões e estratégias que podem levar ao resgate da força e relevância política da ideologia
Se o cientista social Boaventura de Sousa Santos baseia a primeira parte de A Difícil Democracia na elaboração de balanços sobre experiências políticas e sociais que ajudaram a definir a cara da segunda metade do século XX e desses primeiros anos do século XXI, encerra seu livro com uma série de provocações sobre o futuro da esquerda. 
 
São treze cartas, escritas entre agosto de 2011 e junho de 2016, que apostam na ideia de recomeço. “Não questiono que haja um futuro para as esquerdas, mas seu futuro não vai ser uma continuação linear de seu passado”, escreve, apontando para a urgência de uma esquerda reflexiva e que se aproxime outra vez da defesa dos direitos humanos mais básicos. Na segunda parte da entrevista concedida a O POVO, Boaventura avalia como nossas heranças políticas ajudam a construir um novo pensamento de democracia.

Em seu livro, o senhor revisita o percurso da democracia e ascensão da esquerda ao poder ao longo do século XX. Passa pela Revolução do Cravos, a Revolução Cubana, a Venezuela Chavista etc. Qual será a cara da democracia nos próximos 50 anos?

A democracia liberal representativa perdeu a sua luta contra o capitalismo, se é que alguma vez quis lutar. Pensemos na social-democracia europeia depois da Segunda Guerra e na experiência trágica de Allende no Chile. A democracia do futuro será uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa, e esta articulação tem de ser constitutiva dos partidos como forma de lutar contra a corrupção, a opacidade e o clientelismo.

Muitas dessas nações semiperiféricas enfrentaram, no século passado, consideráveis períodos de democracias restritivas e ditadura civil. De que forma essa configuração ajudou a definir nossa democracia dos anos seguintes? O que herdamos - de positivo e de negativo - dessa experiência?

Herdamos uma cultura política autoritária, racista, sexista, homofóbica, a glamourização da riqueza e a banalização de pobreza e da discriminação (quem é pobre é pobre porque não merece outra coisa; o jovem negro é vítima da brutalidade policial porque é bandido; a mulher que é violada provocou a violação devido ao seu comportamento menos recatado). 

Como o senhor enxergou a eleição de Donald Trump como presidente da nação mais poderosa do planeta? Como, nesse cenário, pode-se continuar pensando em estratégias que rompam com o autoritarismo, com o patrimonialismo e com o não-reconhecimento da diferença?

Só um país muito corrupto, com uma sistema político profundamente anti-democrático, poderia eleger Trump. E ele aí está. Um governo de bilionários e de ex-executivos da Goldman Sachs (grupo financeiro multinacional sediado em Nova York). Os EUA são um império em declínio. Se os EUA fossem uma potência assim tão forte, como explicar a paranoia em que caiu sobre a suposta interferência da Rússia nas eleições? Ou o medo de que a Coreia do Norte lance mísseis que atinjam o País? São os mais poderosos no plano militar e algumas das suas multinacionais são de fato muito poderosas, mas isso é outro jogo.  

O senhor fala de “reinventar as esquerdas”. Qual seria o primeiro passo para essa reinvenção? Que papel têm as chamadas “minorias sociais” (movimentos negros, indígenas, LGBTs) nessa revolução necessária?

A reinvenção está no modo de construir as alternativas a partir da base para ajudar hoje as populações excluídas, violentadas, discriminadas. A esquerda tem de ser simultaneamente anti-capitalista, anti-racista e anti-sexista. Mas tem de realizar o seu trabalho nas famílias, nos bairros, nas comunidades, nas favelas. Quem hoje faz este trabalho de base é a direita evangélica. Tem de ser durante muito tempo uma força contra a corrente que não aceita gerir lealmente o capitalismo porque para isso está lá a direita. Tem de ser totalmente intolerante com a corrupção.


A Difícil Democracia, Reinventar as esquerdas
224 páginas
Boitempo 2016
Quanto: R$ 52





Muito obrigado a O Povo
Fonte: http://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2017/01/boaventura-dos-santos-lanca-a-dificil-democracia.html
Data de publicação do artigo original: 31/01/2017
URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=20147 

 

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